via: hypeness
Na manhã do sábado, dia 16 de julho, acordei em São Jorge (GO) para uma experiência inédita: conviver com diferentes etnias indígenas brasileiras, partilhar de sua visão de mundo e filosofia durante a décima Aldeia Multiétnica, no XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros.
Sacolejei quatro quilômetros numa estrada de terra avistando o céu azul onde sol e lua conviviam em harmonia, em contraste com montanhas esverdeadas que compõem o visual único do cerrado. Alcancei em alguns minutos o local onde Pataxós, Xavantes, Krahô’s, povos do Alto Xingu, Kayapós, Fulni-ô’s, Dessanas e Guarani Mbya passariam a semana juntos.
A Aldeia Multiétnica
Entrei na aldeia ao som dos pássaros, chegando numa área circular de terra batida cercada por árvores. Dei os primeiros passos, e cores explodiram diante dos meus olhos. Índios da etnia Fulni-ô, que encararam horas num ônibus vindo de Águas Belas (PE) para participar do encontro, e estavam expondo seu artesanato: cocares multicoloridos, abanos e chapéus confeccionados com palha de ouricuri.
Mais à frente, índias do Xingu exibiam pinturas no rosto e no corpo, colares e pulseiras grossas de miçanga com desenhos geométricos feitos com cores vivas, como vermelho, azul e amarelo. Atrás de sua oca, confeccionada com palha, troncos de árvores e taquaras, mulheres brancas, como são chamadas as não-indígenas, recebiam no corpo nu a pintura típica dos guerreiros do Xingu.
O tema do evento neste ano é “Dez anos de Aldeia Multiétnica: comunicação, saberes tradicionais e novas linguagens” e durante a abertura, quando estive por lá, líderes de todas as aldeias se apresentaram, dançaram e comemoraram o início da vivência.
A ideia é que quem vem de fora se familiarize com o idioma, artesanato, pinturas corporais, gastronomia, cantos, danças e outras manifestações culturais desses povos, ao conviver com xamãs, pajés, agricultores e artesãos. Dentro da programação também estão previstos debates sobre saúde, educação e políticas públicas.
Confesso que ainda tinha uma visão um tanto fantasiosa em relação aos índios e sua cultura. Após minha primeira volta pela aldeia, sentei na sombra de uma árvore para me esconder do sol e esperar o início das atividades de abertura, na área onde estavam os anfitriões do evento, os Fulni–ô.
Puxei papo com Yara, paulistana e grafiteira, que pensei estar entre os visitantes que iriam participar da vivência. Fiquei surpresa quando ela me contou que veio ao encontro para acompanhar seu marido, Shumaya, um dos guerreiros da tribo Fulni-ô. Revelação: Indios Fulni-ô casam-se com mulheres brancas!
“Já viu esse prendedor de cabelo?”, perguntou Yara enquanto tirava o objeto do varal onde estavam expostos os artesanatos. Era um bico de pato adornado por um filtro dos sonhos, de onde caíam penas de pássaro brancas. “Vai contrastar com os seus cabelos castanhos!”, completou. Sentado no banco, seu marido, Shumaya, corpo pintado de preto e cabelos compridos, pitava o tabaco na xanduca – cachimbo tradicional de sua etnia – enquanto observava.
Perguntei quanto custava o adereço de cabelos e a resposta foi R$ 25. “Se você estivesse na minha aldeia, não pagava nada, mas para chegar até aqui temos que comprar a passagem, nos alimentar”, conta Shumaya, cujo nome, no idioma Yatê, quer dizer vento. “Hoje preferimos não matar os poucos animais que temos na aldeia. Vamos até a cidade para comprar porco, galinha, criá-los e nos alimentarmos deles, por isso precisamos de dinheiro. Eu não digo que vendo arte, a gente faz uma troca. É algo que faço com muito amor!”.
Devoção à natureza e mensagens de Whatsapp
Nas bancas, ervas para ingerir ou tomar banho e curar os males do corpo e do espírito. Shumaya contou que eles usam todas as folhas que a natureza proporciona. “Tudo o que o grande espírito plantou em nossa terra é sagrado para nós”. Alecrim para desentupir as vias, tabaco para espantar maus espíritos. “Só que existem dias, ocasiões e momentos para usá-las, seja em banhos, ou ingestas. Você tem que sentir de qual folha necessita. E se usar toda hora, deixa de ser uma devoção”, completou.
Despedi-me de Shumaya com o bico de pato adornado por penas brancas na cabeça. “Daqui a pouco a gente vai dançar, venha assistir”, convidou. Caminhei mais um pouco e fotografei um índio Taunai, que me passou seu número de telefone e pediu que depois eu lhe envie a foto por Whatsapp. Sim, índios também têm Facebook e usam o Whasapp!
Brasil, um país com mais de 235 línguas vivas
O sol baixou e começaram as apresentações das tribos. No microfone, Juliano Jorge Bastos, um dos organizadores do evento falou sobre um dado inusitado do IBGE. No ano passado, 235 linguas vivas foram identificadas no Brasil. Senti como se não soubesse muita coisa sobre a minha própria cultura.
Me emocionei com a apresentação dos Guarani-Kayowá, vindos do Pará, e com a força do canto dos guerreiros Fulni-ô. Em seguida, o pajé curandeiro da etnia Dessana, (AM) Raimundo Kissibi Kumu, pediu que os participantes da vivência, já em roda, se aproximassem para uma benção. Ele entoou cânticos sagrados incompreensíveis aos ouvidos dos não-indígenas, enquanto mexia um chocalho para abençoar a reunião e espantar os maus espíritos.
Índos e não-índios, de mãos dadas, numa só dança
Enquanto a tarde caia e o céu se tingia com os resquícios dos últimos raios de sol, dançamos em roda, junto com os índios do Alto Xingu. Saí da roda para fotografar e me comuniquei por gestos com uma indiazinha, que não falava português, mas quis arriscar algumas fotos com a minha câmera nas mãos.
Despedi-me da Aldeia Multiétnica com as palavras do pajé líder da tribo Guarany Mbya, Alcindo Vera Tupã, do sul do Brasil. Ele agradeceu a presença de todos e observou que nós, que estudamos, sabemos quem foram os verdadeiros descobridores do Brasil. Enfatizou também que a terra é um presente que nos foi dado, e não para ser vendida ou disputada.
Um senhorzinho de pouco mais de um metro e meio que aparenta no máximo sessenta anos terminou revelando a sua idade: 107 anos. “E estou presentes a completar 108, em fevereiro do ano que vem. Minha comida é simples, não tem sal, e eu me alimento assim até hoje. O homem branco chora toda vez que conto a minha idade.” Saí de lá com a sensação de que precisamos ouvir e nos integrar mais com esses povos, compartilhar do seu espírito de união e do vasto conhecimento que têm sobre os animais, sobre a terra e sobre tudo o que dela brota.
Esclarecimento: O XVI Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros é uma vivência que ocorre anualmente no mês de julho. As atividades na Aldeia Multiétnica acontecem entre os dias 15 e 22, e para participar é necessário adquirir o passaporte completo, que inclui diárias de camping, alimentação (café da manhã, almoço e jantar) e as atividades previstas na programação. Por conta de compromissos profissionais, eu participei apenas da abertura oficial, no domingo. Mas a vivência continuou.
Todas as fotos © Luiza Ferrão